quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Por um fio


Era noite, mais um daqueles plantões. Claro, quem estava como médico na emergência? O mais pé frio de todos. Ele era incrível, Dr. Eliel atraía as mais difíceis emergências. Era um tipo esguio, nordestino de estatura mediana, muito agitado, rápido e falante. Ao contrário de muitos de seus colegas, não saía da sala de emergência, sempre à espera do que iria aparecer. E sempre aparecia mesmo, às vezes três , quatro ambulâncias do resgate de uma só vez. Chegavam infartados, baleados, intoxicados, esfaqueados, convulsionados, atropelados... ele ali, sempre à postos. Quando saía para comer, voltava rapidinho sempre perguntando. E aí, tem algum paciente? Ele tinha sede em atendê-los. E era sempre um grande prazer trabalhar com ele, porque, apesar de atrair tantas emergências, ele era amigo da enfermagem. Não ficava só mandando não, colocava literalmente a mão na massa, ou melhor, no paciente. Prescrevia e ao mesmo tempo ajudava nos procedimentos. Enquanto passávamos uma sonda em um, ele já estava puncionando o acesso de outro. E sem reclamar. Quando agradecíamos a ajuda ele dizia, imagina, vou deixar o paciente esperar só olhar, não, além do mais eu gosto de fazer procedimento, o contato com o paciente me proporciona prazer. O que vale é salvar a vida dele. Quando o paciente saía da emergência sempre ia visitá-lo na enfermaria ou na semi-intensiva, como vi várias vezes, e dizia : te puxei pelo pé, graças a Deus você está aqui e descrevia para ele toda a história emocionante de quando sua vida estava por um fio.
Mas nesta noite, havia duas amigas escaladas na emergência, uma delas havia ido jantar, logo no início do plantão. Ela pensou : plantão do Dr. Eliel tranquilo , vou comer logo antes que o bicho pegue. Ela era uma das mais competentes profissionais que já conheci. Ensinou-me tudo numa emergência. Era precavida e esperta, deixava tudo preparado, tudo revisado, tudo a mão para qualquer emergência ou intercorrência. Mas nesse dia...enquanto jantava chegou um paciente, parado. Corremos na emergência para ajudar. Dr Eliel, como sempre muito rápido, sempre a postos o atendeu imediatamente. Só que quando foi dar um suporte ventilatório o ambú não funcionou, pediu outro para a outra colega que estava lá, também não funcionou, pediu para que ela buscasse rapidamente em outro setor. Ela foi, muito calmamente. Então ele irritou-se profundamente. Sempre amigo da enfermagem que era, nunca o vi tão bravo. Ela voltou . Já havíamos preparado o material para a entubaçã0...mas...o laringo não tinha sido testado. E quando ele ia introduzi-lo pela boca do paciente, a luz não acendeu. A pilha havia acabado. Pediu novamente para a funcionária buscar uma pilha ou outro laringoscópio, ela foi, muito calmamente. Então ele explodiu : _Quer parar de desfilar por favor, corra! Ela, então muito contrariada pelos seus esbravejamentos, entregou outro laringo. Ele suava, tinha um brilho no olhar que era um misto de esperança e desespero. Por fim terminou o procedimento. O paciente estava á salvo. Por um fio!
Ele então olhou para nós, muito cansado, parecia esgotado mesmo. Ajoelhou-se aos meus pés no meio da emergência e gritou : _ Esse aí, é seu pai, é sua mãe, é seu filho, é você! E saiu da emergência com muitas lágrimas nos olhos.
Nunca esqueci essa cena. Mas o que esta vida realmente me marcou foi o o que aconteceu meses após. Cheguei no plantão e todos com o semblante muito triste..._Poxa, o que aconteceu?, perguntei. Dr Eliel partiu foi a resposta. Estava passando férias no Nordeste, um acidente numa estrada, uma carreta tombou com a carga em cima dele. Pus a mão na boca, e chorei muito.
Dr Eliel que tantas vidas salvara, mesmo as que estavam por um fio, e que tinha imensa satisfação em dizer: _Que bom! Foi por um fio, mas você está aqui. Ele , ele mesmo, não teve tempo de ser socorrido. Que ironia! Talvez se tivesse passado ali alguns minutos antes ou depois, se tivesse ido passar férias em outro lugar, não sei. É tão pouco o que nos separa da morte. alguns minutos, um ambú que funcionou, uma pilha para um laringo, um acesso venoso que deu certo, uma bolsa de sangue, uma mudança de idéia...
Mesmo vendo, ao longo de todos esses anos, várias vidas serem salvas por questão de minutos, sei que pode não haver mais tempo, pois estamos todos por um fio.

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